sexta-feira, 20 de junho de 2008

Ampulheta

Nas névoas de um tempo perdido, pairam como distantes folhas as pequenas alegrias, fragilmente suspensas numa árvore surrada pelo vento implacável. Os grãos de areia escorrem pelo gelado vidro de uma ampulheta eterna; sempre vigilantes, sempre graves, as sementes do tempo são como pequenos lembretes, afiados e certeiros, da consciência onipresente, mãe terrível.
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Lembra-me.
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Vejo minha própria sombra projetada, dançando como um esqueleto macabro, nos vaus que passam e passam, tempo e tempo, dia e dia, século e século, jocosa, caçoando deste fardo atemporal, o ônus da responsabilidade. Irresponsável.
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riverrun, past Eve and Adam's.
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Ai, apoio que afunda na lama! Onde é que vou com estas pernas fracas? Não se pode vacilar, meu cavaleiro, diante da garganta deste Senhor tão guloso. Falhas no teste de fé, e de nada adiantará cair sobre os joelhos, prostrar-se na Terra, clamar pela piedade. Nega-lhe! Nega-lhe! Negam-lhe, estes terríveis profetas de destruição e desgosto. Paga pelo tu pecado, meu bom cavaleiro, e paga a penitência pelo que não cometeste.
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Mea culpa, mea maxima culpa.
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Não é minha culpa. Demônios de enxofre e podridão, araustos fétidos dos mais baixos planos. Monumentos de descontrole. Ai dos deuses, que vossa provação não seja tão pesado ônus. Falta-me ar, fôlego; falta-me estilo; falta-me métrica e paciência; falta-me força e coragem; falta-me ignorância, ainda que eu seja ignorante. Falta rima, poesia, beleza. Onde foram parar minhas noites de cristal?
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sed libera nos a malo.
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E caiu um grão, apenas. Uma minúscula idéia, um grão de areia. Torrencial. Único. Infinito. O tempo não passa. Alonga-se na lama negra, e acelera quando vislumbro uma miragem. Paciência. Não areia. Não pressão. Não tempo. Não consciência.
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Noites de Cristal, não mais.
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Amen.


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