domingo, 16 de dezembro de 2007

criança


Eu queria ser criança. Queria ser criança de corpo e alma, queria brincar e imaginar um mundo só pra mim. Queria poder rir com inocência, poder arder com o desejo da curiosidade. Queria ser livre de correntes, livre da ambição e da responsabilidade, livre do peso da experiência. Queria ser criança, com a consciência de quem sente alegria por ela mesma, queria o pecado da ignorância, a benção de uma alma pura. Queria o suspiro virginal e o brado de humildade infantil. Queria, por Deus, essa alma repleta de poesia, de novidade, de fantasia, de brilho. Queria devolta meu tesouro, minha contemplação de um mundo simples, a precariedade fugaz de momentos que não duram mais do que cirandas e amores passageiros. Queria mergulhar nesse tempo que já foi, nesses aureos idos de uma outra vida. Queria, por toda a poesia, voltar a ser criança.

saudade


O Firmamento, safíra plácida, brilhante e glorioso como o olho de Deus, mantém a eterna vigília pelo caminho daqueles que empregam a jornada da alma. As pegadas desses passos que se afastam ecoam apenas na saudade e na memória, cada vez mais vívida, porém fugaz e nebulosa. Rostos que um dia riram, já não tem contornos; faces que expressavam uma vida já não podem mais ser tocadas. A voz, um dia tão familiar e confortável, agora junta-se aos sopros dos anjos. O olhar, materno e cuidadoso, não me enche mais de segurança terrena, mas zela, do alto de uma estrela perdida, pela tranquilidade de meu espírito. Para cada lufada de vento, uma lembrança carinhosa. Nos raios de sol e nas folhas das árvores, toques ternos de dedos que não mais se entrelaçam com os meus. No brilho de uma Lua jovial e curiosa, a presença brincalhona de quem não mais carrega o peso da existência. Um verão eterno, um dia sempre belo. Troquei, forçado pelo toque da Fortuna, o abraço quente pela dor conformada da perda. Reside, em cada lágrima, em cada soluço reprimido, a esperança de um dia, novamente, repousar minha cabeça naquele ombro que me criou, e, juntos, tornarmos nossas mentes um receptáculo de paz e eternidade.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Julgamento



Quem condena minha alma, senão minha própria consciência? Não conheço outro juíz, que não os graves olhos encarcerados em minha mente. Se as linguas de fogo ardem minha pele, é porque fui culpado diante da geniosa maré do meu coração. Para cada açoite, um pecado. Cada pecado, um erro que jamais cometi, e uma falha que jamais toquei. Os grilhões são morais, e o crime não passa de uma perspectiva do que não foi, não é e nem será. A esperança, aqui, nega-se com a Providência. "Pecarás", digo a mim mesmo; "Pecarás mesmo que não peque", ouço minha própria voz afirmar. Pelo certo, fico com o errado. É inevitável que eu caia neste enxofre, nessa imundíce reservada aos mais abjetos. Afinal, em minha soberania, descansa minha culpa. Meu paradoxo não passa de uma Minerva às avessas, uma decrépita divindade cega, orgulhosa, juíza e criminosa. Minha balança pende para o lado da espada; justiça, apenas a minha própria, auto-imposta, rigorosa, infalível. Ai desses pensamentos impuros, algozes vorazes, abutres famintos. O chicote que se ergue é feito de verdades e mentiras. A Coroa, um espinho de valores que não quebrei - mas se pensei em quebrá-los, é o suficiente para o cárcere perpétuo. A palmatória me acusa, e dela não duvído. Mesmo que não tenha cometido crime algum, mesmo que não tenho ansiado o mal ou maculado o brilho virginal da virtude, a consciência do dever me persegue. E, neste estado marginal, nesta vilania, encontro a arte. Na dúvida e no incerto; só ali tenho a poesia.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Outra.

Mais uma vez. Sem surpresa ou poesia. Sem apreço ou afeto pela esperança. Sem cor e sem lágrimas. Marasmo, pleno. Apenas o interregnum do coração. Que afável forma de se contentar com o monocromático dia-a-dia. Nem um brado de poesia, nem um ressentimento para afagar a auto-piedade. E lá se vai, meu olhar, novamente, fixo num horizonte ideal. Volto agora, para o imaginário.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

cacos


E aqui estou eu, juntando os cacos do que poderia ter sido mas não foi.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

corpo


Fez-se noite, por dentre fragmentos de uma sombra amorosa. Dissipou-se um sentimento desejado, enquanto suas brumas contaminavam os respingos de afeto e de esperança. Numa árvore sem vida, cresciam as chagas de uma experiência mal experimentada. O cheiro ocre alimentava a ilusão de um sucesso momentâneo, inebriante como o incenso de um relicário sagrado. Por breve segundos, embriagou-se o céu com seu próprio veneno, e o firmamento desabou sobre minha cabeça. Não poderia enxergar, turvado pela fumaça de um discurso feito em pedaços, um calvário construido com meu próprio esforço. Não reguei com carinho, e agora colho o fruto podre de um capricho espiritual. Os olhos pesam, a boca seca, a alma enfastia-se com o choramingo incessante da criança fantasiosa. A mente deixa de procurar lógica, e os dedos já não tem força para tocar um outro mundo. A pele não sente, e as pernas não se movem. O peito não aspira, e o coração não bate; deixa-se de ouvir o ritmo melancólico do pensar, enquanto o corpo entra num ocaso de sangue e lágrimas. Contemplo o meu naufrágio, meu recife de incapacidade. Arde essa cicatriz, marca de um infeliz escolhido. E, lá ia eu, e assim eu vou, num perambular orgânico de vazio e de pesar.

domingo, 2 de dezembro de 2007

diferença

Procurava, certas vezes, encontrar o valor que pode haver na diferença. Intentava, inocentemente, entender a alma do outro, conhecer a motivação que força seus sentimentos, apreciar cada detalhe da vida alheia, como se ela própria fosse minha. Despia-me, por breves segundos, do típico egoísmo de quem tem um coração: era eu, ali, um simples observador, com medo de tocar a paisagem. Naqueles momentos, eu não passava de uma sombra, alguém que preferia ouvir a falar, pensar a agir - eu era apenas um sussurro. O trabalho era fatigante, e o peso do auto-esquecimento difícil de se suportar. E tal era meu protesto, quando após absorver toda a tristeza do mundo, ninguém fazia o mesmo por mim. Eu bebia do poço de fel, sem que ninguém me fizesse companhia. No alto de minha consciência, lá pairava eu, um tolo amargo e constantemente preocupado. Todas as máscaras penduradas em minha parede, todas as fadas prensadas entre as páginas de meus tomos, todas as vozes e brincadeiras, apenas denunciavam que eu era outro, que eu preferia ser outro, preferia sofrer com outras dores, me decepcionar com outros erros, me apaixonar com outros amores. Meu projeto de autruismo e entendimento não passava de um castelo platônico, com espelhos que refletiam experiências não vividas, toques não tocados, beijos não beijados. Com inocência, eu alardeava sofrer com o mal de outro, e sequer percebia que infantilmente virava os olhos para o meu próprio mal, com medo de encara-lo e, finalmente, admitir que este era meu, e só meu. Assim, procurei não mais a dor em outras terras, mas tentei escavar meu próprio espírito, buscando meus tesouros escondidos, minhas vontades encerradas em antigos baús de madeira. Abri os olhos, finalmente. Porém, minha visão foi turvada pela fumaça; não consegui, e nem consigo entender esse complicado jogo da existência. Não sei como tocar a mão de uma dama sem construir uma triste história de amor, nem sei como criar uma amizade sem que imagine fantasmas e situações traiçoeiras. Não sei dar um beijo sem cobrar, com fervor, a mesma covardia que tive ao tocar o espinho: fui ao outro extremo, e num ataque esquizofrênico, cobro agora minha própria sombra, alguém que me observe segundo meu bel prazer, e que sofra o que eu não sofro, e que imagine o que, em minha mente, seria inimaginável - cobro alguém como eu, que pense cada passo dado, e que se enfastie com a auto-responsabilidade. Quanta tolice condensada numa só atitude. Bastaria, talvez, um pouco de ignorância para que eu pudesse, finalmente, sentar em uma cadeira e apreciar, sem metafísica, o ar cheiroso ou o perfume encantador? E, se antes eu era uma sombra que vagava pelos outros, agora me torno uma sombra que vaga por mim mesmo. Contudo, espero. Ainda espero. Ainda espero pelo dia em que, finalmente, darei meus primeiros passos, balbuciarei minhas primeiras palavras e explodirei em emoção com meus primeiros sentimentos. Aguardo, com esperança, o dia em que caminharei com minhas próprias pernas, e abrirei pela primeira vez os olhos, e não mais me preocuparei se atinge ou não essa tão famigerada condição que alguns chamam de esclarecimento.

pavimento


Meu valor moral cai aos pedaços. Não resiste ante a tentação da apatia. Meus princípios desmoronam frente a prova de fogo - a inércia é forte demais para que eu mova um dedo. O desgaste é inevitável. Saem as cores vivas do pavimento da alma; cada tijolo é assolado pelo quotidiano, ferido pela corrosão egoísta. No movimento incessante, o tempo urge. Não sobram moedas para a melodia solitária do observador. Contemplação, eu diria, dignifica o sentimento (como sou mentiroso) - reconforto-me, apenas, nessa auto-piedade; é fácil esperar o sofrimento. Quem enfretaria, afinal, a certeza? Ai de mim, que me agarro à Providência, como se o espírito estivesse a mercê de um mero jogar de dados. Isso é que dá, apegar-se à Deuses geniosos e amores platônicos. O fardo é pesado, porque assim posso reclamar de carrega-lo.