quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Esforço


Decreto minha incapacidade! Sigo em frente, sem chão, sob a sombra de nomes e rostos esquecidos. Valham-me, Deuses Inferiores, que tanto riem da sujeira que brota em minhas solas. De que me adianta entoar uma bela melodia, se os ouvidos de minha Donzela preferem o gorjear de um (in)destino qualquer? Já não protesto ao encarar meu círculo de fogo; já não ligo de sonhar com o espectro de minha Valquíria, tão inatingível quanto meu Palácio imaginado. Sequer as palavras eu consigo articular. Minha confusão aproxima-se do Caos dionisíaco. Minha realidade não tem sentido, não tem estética, não passa de brilho rubro dos cabelos de uma divindade renascida. Não se prezem ao esforço. Não há Hera neste Olímpo que recompense este meu espírito Hercúleo.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Cantar de Fingolfin

Não havia volta, quando os demônios do Mundo inferior resolveram assolar o destino dos bravos. O sangue inocente manchava o chão, ocultado pela sombra das fúnebres chaminés do Fim do Mundo. Os poucos com coragem para olhar na face do próprio Mal, juntaram-se em volta de seu líder, e choraram a infelicidade de um dia terem pisado nesta Terra, fadada ao cárcere do mais temível dos Senhores. Numa última investida, o majestoso herói cavalgou sozinho em direção aos portões frios. O estampido de seu cavalo soava como uma tempestade rugindo; perguntavam-se se os próprios Deuses não haviam descido de seus altares brilhantes e investido contra seu inimigo. Mas era apenas um, corajoso e bravo, encarando sozinho para sua triste sina. Clamou pela temível criatura, e o rangido do Portal se abrindo soou mais tétrico do que o gorjear de mil aves negras.O fedor era insuportável, quando o próprio Senhor da Escuridão adentrou os campos de Lágrimas. Gigantesco e taciturno, por três vezes golpeou o pobre Herói, que por três vezes aguentou como pode o baque do Martelo das Profundezas. O destino de um povo era decidido ali, no topo das Montanhas de Ferro; não havia mais espaço ou tempo para o pobre cavaleiro, fadado ao doloroso fim. Incitou à coragem seus iguais, e, num último suspiro, derramou sangue do Terrível Carrasco, antes de fechar os olhos, plácidos e majestosos, pela última vez. E assim caiu o Alto-Rei Fingolfin, mais corajoso e mais bravo dentre todos os Noldor.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Conto de Eärendil


Por decreto divino, o mar era proibído. A costa brilhante não passava de um sonho distante para os que ouviram as histórias de outrora. A torre branca, erguendo-se alta como um astro de marfim, era o farol de esperança nesse tempo negro, de sombras horríveis e lamentos carregados. E onde estavam as jóias, cobiça de todos os homens? E onde estavam os heróis, aqueles altruístas capazes de sacrificar a prória alma em nome de um único facho de luz? Clamam pelo marinheiro, aquele de linhagem nobre, único em coragem para enfrentar o lânguido sorriso de um oceano traiçoeiro. Iluminado pelo brilho da Criação, voôu, com graça, feito uma ave de fé e honestidade. Tocou, com seus pés descalços, a areia macia de uma praia cuja imortalidade jamais havia sido maculada por um homem de sangue corrente. Numa corrente de bravura e altivez, foi abraçado pelos Deuses, e lançado na maior das provações; em troca da paz para os homens, o pagamento seria a eternidade em vigília. Ao Sol e a Lua, foi brindado o espírito incansável, protegendo para sempre o firmamento. Livre das sombras, que agora eram acorrentadas para além dos limites da existência, viajava noite e dia o bravo marinheiro. Jóia na testa, iluminando com esperança toda a escuridão fria da mortalidade. Lá ia, noite e dia, o bravo marinheiro. Brilha, eternamente, Estrela Solitária.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Poço


Que é que se esconde, afinal, atrás da bela máscara de marfim? Seria o sorriso inocente do Arlequin, ou a lágrima recheada de desejo do Pierrot? Com quantas cores brilha esse traje monocromático? E essa melodia suave e provocativa? Ela é que embala os passos tímidos do bufão invisível, artista solitário de um palco vazio; segues com rimas e cantigas, pobre caminhante dessa corda bamba poética. Curinga, triste carta fora do baralho. E essa alegria? De onde vem? Acaso misturas sinceridade com mentiras, infeliz palhaço? E tua alta gargalhada? E tua fala jocosa? Que significam tuas palavras, pequeno enigma? És tão secreto, no teu raso desabafo. És tão previsível no teu mistério circense. És tão simples que nem sabes o que se passa nesse teu espetáculo diário. Pois quem olha de longe, de pronto adivinha: não eres nada mais, meu jovem inconstante, do que um pequeno poço; um pequeno poço, cheio de pecadilhos, alegrias e tristezas. Pequeno. E único.

domingo, 21 de outubro de 2007

Sintaxe


Náusea. Descrevo-te meu afeto por vosso sentimentalismo. Digo-lhe o que penso sobre vosso olhar, sobra vossa postura, tão digna e tão sincera de encarar a vida. Louvados sejam os Deuses Imortais que, em momento de incauculável sabedoria, pariram no mundo criatura tão magistralmente dotada de sensibilidade e carinho. Rogo, todas as noites, diante do leito, por receber vossas pérolas da mais profunda (des)humanidade. Que bela demonstração reservai-nos, ó bela Esmeralda suja de lama. Sem cálculo e sem chão, prosseguieis com vosso Réquiem existencial, entoando estas melodias tão belas aos tolos, tão falsas aos pobres diabos que beberam desse mel azedo. Sorte temos, espectadores do vosso show grotesco. Sorte de baixar os olhos sobre tão inconsequente inverdade. Jamais diria mentira, pois está aí uma qualificação que não existe em vosso vocabulário da vida. Repousem, almas sem dono, no interior dessa bela árvore oca. Afaguem-se, corpos sem alma, nesse belo ninho de fadas, nesse recanto de dessassossego e podridão. Respiramos o ar de vossa carniça. Voluntariamente aspiramos vossa pele ensebada pela sujeira de vossa vergonha. Vai! Não desisties! Deslumbramo-nos com vossa orquestra patética, com vossas frases em belas linguas, com vossas mais sinceras verdades mentirosas. Confundiei-nos com aqueles de vossa laia. Prosseguieis, por favor, com vosso sorriso digno do mais baixo dos palhaços.

sábado, 20 de outubro de 2007

(in)tradução

Já é tempo. Meus joelhos tocam o chão, com o baque surdo que só um desistente poderia ouvir. Minha lástima ascende, feito a fumaça de um antigo relicário sagrado, dedicado a um antigo Deus, já esquecido. Todas essas luzes, essa mensagem que vem do mais alto ponto da minha mente, já não me significa nada. Quem poderia, afinal, traduzir o desconhecido dialeto de uma outra era, de um tempo de sentimento e felicidade? Sequer consigo ser direto; não atinjo o limiar do poeta, nem do profeta. Continuo perdido no limbo das palavras, sem ambição de que essa fina linha de literatura me mantenha no Panteão que não me pertence. Falo, falo e falo. Não ouvem nem os surdos, nem os mudos. São discursos para poucos. Talvez, para nenhum. Essa lingua apenas eu conheço, e transcendo em meio árvores e montanhas. Falo para os passarinhos, sem que uma auréola legitime minha loucura. Falo palavras de instrospecção, sem que o tímido se conforte. Falo aqui, sozinho, para mim e mais ninguém. Não peço ajuda para construir meu templo, e nada pode tocar minha fé. Ela está aí, erigida e implacável, dedicada, toda ela, aos Deuses sem nome, esses invisíveis medalhões de santidade, que habitam lugar algum, senão minha própria alma.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Abstrato

Na núvem de poeria, voavam todos os sonhos inacabados, livres da cobrança egoísta da esperança. Naquela Pandóra inconsequente eram selados todos os pensamentos brilhantes e jubilosos, longe das escuras sombras, aquelas que fazem balbuciar os adultos, que fazem praguejar os conformados, que fazem orgulhar-se os céticos, cegos com a própria fantasia. Um toque dessa inocência infantil, tantos anos esquecida, para que um Universo inteiro surgisse num piscar de olhos, em meio uma animada melodia, doce, de sossego. E de que adiantavam tantos compromissos e repressões? No fim, nada mais significava, nada mais fazia sentido, nada mais se fazia sentir. Era um fluxo, uma maré de palavras invisíveis e abstratas. Um sentimento a cada ponto, uma vida a cada palavra. Um tesouro, escondido no fundo de uma alma tão surrada. Um mundo, esquecido nos confins de mãos calejadas pelo sofrimento, aquele típico do tempo, que faz cair o sorriso da face, que faz esmaecer o vigor do músculo, que faz esquecer a brincadeira, o gracejo virginal. E, neste mundo, terra de poetas, de crianças e de loucos, residia aquele raro pedaço de felicidade, aquele que caiu do céu, na carona de um cometa, e que só brilhou para os puros, para os intocados pelo véu negro da consciência...... e foi justo neste desvaneio, nesse segundo fugaz, que, por um momento, eu encontrei a eternidade.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

pântano


e na charneca, os abutres regorjizam-se com a carniça da insegurança. Rondam os espíritos caídos dos fracos e dos hipócritas. Nesse lodo de desespero, ouve-se o clamor sufocado da indiferença, vê-se a sombra incansável do amor não correspondido, sente-se o frio tenebroso da infelicidade inevitável. O medo, o fracasso e a tristeza sustentam esse cenário dantesco: são os bastiões do fim do mundo, o toque abstrato da incompreensão. Grotesco, o fedor desse sentimento imundo soa como o sino do leproso, marca o sinal do desgraçado, daquele pobre tonsurado obrigado a descer de seu trono de paz e enfrentar a vergonha de tocar o próprio rosto, desfigurado com as afiadas garras do coração aflito. Não é justo, que eu, ainda que moribundo, caminhe com os já putrefatos infelizes, malditos diabos que caíram do inferno para sofrer as dores da vida. Não é justo carregar o fardo de encarar, hora por hora, cada um desses círculos do Tártaro. Não é justo que eu, ainda que habituado visitante do subterrâneo, tenha de compadecer dessa impotência, dessa fatalidade, dessa incapacidade. Não é justo caminhar nesse Pântano de desesperança...